“Escrevo aqui não como presidente da SBPC, mas como analista político. Para fazer a célebre distinção do ex-ministro Eduardo Portela, eu estou na Diretoria SBPC, com muita honra, mas sou alguém que usa a filosofia para pensar a vida e a ação políticas”, pontua Renato Janine Ribeiro

O presidente Lula fez um belo discurso na abertura da 5ª CNCTI. Estava visivelmente satisfeito com a entrega do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) – o que, por sinal, levaria algumas horas depois o jornalista Luis Nassif a dizer que o governo Lula 3 começava naquele momento, com um primeiro plano motivador para o desenvolvimento econômico e social, prioridades que devem ser as do atual governo.

Lula cobrou. Em alguns momentos foi até duro com seus ministros, apesar do orgulho que manifestava pelo PBIA. Mas foi duro com todo o mundo. Foi duro com os ministros, mas também com os cientistas. E com si mesmo (alguns preferem consigo mesmo, mas se diz com nós mesmos; Antonio Medina usava “com si mesmo”, sigo sua autoridade). Lula fez questão, o que é corretíssimo, de dizer que ele e todos nós somos passageiros, e que a missão de que estamos incumbidos nos ultrapassa – por isso mesmo, temos o dever de cumpri-la. Isso é pura doutrina democrática, ótima: as instituições, o Estado, o país não se confundem com os indivíduos que passam por eles.

Penso que Lula sente, há anos, algo assim: ele deixou o governo em 2010 com o Brasil à toda. A célebre capa da Economist mostrava o Corcovado virando foguete: o país decolava. A economia bombava – mas, sobretudo, os indicadores sociais haviam subido em proporção ímpar. Uma imagem usual daqueles anos mostrava como a pirâmide social havia sido substituída por um triângulo: isto é, pela primeira vez em nossa História o miolo da hierarquia social (a classe média, da baixa à alta) era mais numeroso não só que os de cima, os ricos, como soa óbvio, mas também do que os de baixo, os pobres e miseráveis [1].

A mobilidade social ascendente era notável. A fome estava a caminho de ser completamente eliminada do cotidiano brasileiro, subsistindo apenas entre grupos de mais difícil inclusão social – que quase sempre os há.

Um salto quantitativo e qualitativo em tal proporção é possivelmente inédito. Nem a China, que fez centenas de milhões deixarem a miséria em algumas décadas, realizou um avanço de tal proporção (insisto, falo aqui em números relativos, não absolutos) em tão pouco tempo – cerca de meia dúzia de anos. A China conseguiu mais do que isso em números absolutos, mas ao longo de décadas; o Brasil integrou seus miseráveis, quase abateu a fome, em dois ou três mandatos presidenciais, incluindo aquele que Dilma concluiu.

Era de se esperar que o País continuasse assim. Contudo, sabemos o que aconteceu. Alguns criticarão Dilma, mas o fato puro e simples é que a tormenta do impeachment sem crime de responsabilidade, seguido por dois governos altamente problemáticos, levou o Brasil a perder uma década – ou mais. Lula reassumiu o governo com as agências de governo praticamente destroçadas. Olhem-se a Saúde, a Educação, ministérios enormes e fundamentais, olhe-se o MCTI, o Meio Ambiente: tudo em frangalhos. E não esqueçamos a fome, a volta de doenças crônicas, o descaso com a educação, o negacionismo, o combate à vacina (que começou, por sinal, antes mesmo da pandemia de covid-19, conforme relatou o New York Times num artigo notável [2]), culminando tudo isso no sacrifício de meio milhão de vidas, pelo coronavírus, a mais do que a média mundial.

Lula, que certamente esperava que até 2020 o Brasil tivesse dado mais um salto qualitativo, enterrando de vez a fome, acabando com a miséria, reduzindo a pobreza, tornando-se “um país de classe média” (a expressão é de Dilma, mas ele provavelmente concordaria), recebe de volta a presidência numa situação pior do que em 2002. Sabe muito bem que a nação continua rachada; que, embora Bolsonaro tenha chegado aos 49% na eleição devido a mil golpes baixos (não só fake news, mas também auxílios aprovados em tal monta que destruíram o equilíbrio orçamentário, ante a tolerância das classes ricas), o líder da extrema-direita ainda conta com a simpatia de quase metade da população. Isso requer medidas rápidas. O presidente do Banco Central teima em manter altos os juros, assim evitando um novo espetáculo do crescimento. A direita não democrática prefere destruir o País, a perder a expectativa de voltar ao poder em 2026.

Comparação entre a pirâmide social de distribuição de classes (de acordo com a renda) em 2005 e 2010.

Fonte: IstoÉ Dinheiro, 22 mar. 2011.[1]

[2] https://www.nytimes.com/2019/08/15/the-weekly/how-youtube-misinformation-resolved-a-whatsapp-mystery-in-brazil.html?searchResultPosition=1.

Lula precisa então vitaminar a força da economia. Seu objetivo não é, nunca foi, a economia em si – é o que ela pode trazer para melhorar as condições sociais dos brasileiros. Sabe que não é fácil. Por um lado, sofre a oposição implacável dos que pretendem manter uma taxação baixa sobre quem pode pagar (os ricos) e um corte de gastos reclamado todo dia, que prejudique os mais pobres (saúde, educação) ou o próprio País (a ciência). Por outro, vivencia a pressão de sua base política, que clama por recursos necessários, justos, mas inexistentes no momento se não tivermos uma reforma tributária que cobre de quem pode pagar, nos altos rendimentos e elevado patrimônio. Finalmente, num quadro político polarizado pela extrema-direita, que é forte no Congresso e nos governos estaduais, a proverbial habilidade política do Presidente – provavelmente a maior já vista em nossa História – tem dificuldades em fechar tantas equações.

Lembro muitas vezes o conto de Rubem Fonseca, O cobrador, que imagina um indivíduo que chega ao meio dos ricos para lhes cobrar – com a máxima violência – séculos de indignidade e de injustiça social. Esse conto, de 1979, é ainda mais forte porque o autor, quinze anos antes, colaborava com o IBAD, uma entidade que preparou o golpe de 64, com apoio dos Estados Unidos e dos ricos brasileiros. Deveria ser leitura obrigatória para quem deseja entender o que hoje se chama de terrorismo, compreender suas raízes sociais, e entender como a injustiça social abastece a violência.

Pois a dívida social do Brasil é enorme. Lula ambiciona, há décadas, quitá-la. É esse o seu projeto de vida. Sabe que a justiça social é o melhor remédio para evitar a violência. Sim, os dois mandatos iniciais do atual Presidente se beneficiaram de um panorama internacional favorável. Teve a seu favor o boom das commodities. Mas sua diferença é que soube utilizá-lo em prol do País. Celso Furtado, na Formação econômica do Brasil, comenta que no final da II Guerra Mundial nosso país dispunha de reservas enormes, dada a exportação de matérias-primas para as nações na frente da guerra. Mas o governo Dutra torrou esse maná importando produtos, muitos deles fúteis, vindos dos países ricos. Somente dez anos depois é que JK lançaria o Brasil no rumo da industrialização, que era e possivelmente pode voltar a ser, a porta de entrada para a dignidade humana. Já os governos Lula 1 e 2 souberam empregar os recursos disponíveis no avanço da economia, mas também da saúde e da educação, sem esquecer a ciência e tecnologia.

Em suma, o Presidente tem pressa, o Brasil tem pressa – ainda mais porque estamos em tempos adversos, que requerem muita energia. Para usar a expressão de Romain Rolland, que muitos conhecem pela citação que dele fez seu leitor Antonio Gramsci, necessitamos que “o pessimismo da inteligência não abale o otimismo da vontade”. Grandes escritores franceses, como Balzac e Stendhal, duzentos anos atrás, puseram em cena personagens que podiam até fracassar – como o Rafael da Pele de onagro, ou o Julien Sorel do Vermelho e o Negro, mas não abriam mão da força de vontade, na luta por mudar a vida e o mundo. É disso que necessitamos, agora.

Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), ex-ministro da Educação, membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

 

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